Alma de professor
 



Contos

Alma de professor

Carol Canabarro


Acordei numa sala sem paredes iluminada por luzes brancas cor de leite. Na minha frente surgiu um ser que, mesmo sem boca, falou dentro da minha cabeça:

- Você morreu, Jurema.

- Imaginei. Quem é você? Onde estou?

- Sou Amorfo, estamos na antessala aonde os recém-chegados fazem o Grande Teste para saber com qual deles deve seguir. Ele guia meu olhar para esquerda.

Sentados em duas poltronas vejo um homem alto, branco, de terno e gravata, cabelos dourados e olhos azuis quase transparentes; e uma mulher, cor de universo, cabelos trançados presos num turbante, olhos amendoados de um preto que tudo absorve e vestida numa bata que muda de cor conforme se move. Eles acenaram para mim.

- Eles são...

- O Diabo e A Deusa.

Acenei de volta.

Num rompante, Deusa e Diabo somem e a sala se transforma. Surgem quadros me envolvendo 360º com cenas da minha vida. Conforme direciono meu olhar, as pinturas ganham movimento.

- A partir de agora reveja sua vida e, se surgir algum momento que queira mudar, por favor, sinalize tocando a tela. Leve o tempo que precisar, nós saberemos quando estiver pronta.

Assentindo com a cabeça agradeci e me dirigi para o quadro em que aparecia ainda no útero de minha mãe.

Passei um bom tempo revivendo as sensações inomináveis para um bebê que desconhecia o mundo. Senti compaixão pelo medo que tive segundos antes do parto e conforto ao receber o colo caloroso de minha mãe, Dona Cecília, na primeira vez que não dividíamos o mesmo corpo.

Vi a menina Juju no pátio da casa da avó correndo atrás das galinhas. A falta de domínio nas pernas e a vitória constante das aves me fizeram sorrir. Passei ao funeral da vovozinha, que subitamente nos deixou. Voltei alguns quadros e demorei numa cena em que cozinhamos juntas. Chorei saudade.

Depois, revi minha adolescência. O desconforto em frente ao espelho, incapaz de valorizar minhas curvas, cachos e cor de chocolate. Não foi fácil ser jovem preta num mundo que insiste em valorizar apenas o que é branco.

No quadro seguinte, quis desviar o olhar. Resisti. Senti de novo o líquido vermelho com gosto de ferro escorrer pelo nariz depois da briga com o primeiro namorado. A dor física foi amena perto da dor psicológica que carreguei por longos anos.

A custo, avancei.

Vi-me rodeada de livros, estudando nas madrugadas para o vestibular. Só dispunha dessas horas. Durante o dia ajudava a mãe no salão de beleza. Aprendi nas conversas com as clientes o que os livros não ensinam. A gratidão pelas clientes e amigas da mãe só aumentaram.

Celebrei com a jovem Jurema o ingresso na universidade federal. Assisti meu pai, caminhoneiro, ligando para o orelhão em frente à nossa casa quando leu meu nome na lista dos aprovados. Fui a primeira da família a concluir o segundo grau e agora entrava na faculdade. O orgulho dos meus pais não cabia em suas peles.

Assisti-me no curso, curtindo festas com os colegas, aprendendo a ensinar e, principalmente, aprendendo a aprender. Revivi as passeatas do movimento estudantil, as lições tiradas nos grupos de estudo, os amigos que me acompanharam pela vida toda. Revi Osvaldo. Apaixonei-me novamente pelos seus cabelos crespos, pelo corpo forte, pela voz rouca e o sorriso sempre disponível. Curei-me outra vez do trauma que o primeiro amor tinha causado. Amei com ainda mais intensidade aquele que se tornaria meu parceiro.

Deixei cair duas lágrimas quando da minha formatura o pai foi só lembrança. O coração cansado do velho parou antes de ver a filha de toga.

Assisti a construção da nossa casa no terreno de Dona Cecília. Queríamos minimizar a solidão da velha. Deu certo. Meu marido era bom com ela, fiquei feliz por revê-los sorrir. Acompanhei a matriarca mantendo o salão "para ajudar nas despesas" e meu companheiro fazendo serão num importante jornal. Ele era bom com palavras. Apesar da escassez financeira que nos acompanhou até os últimos dias, a vida ao lado deles foi boa.

Senti de novo o estômago suando quando me vi ministrando a primeira aula no município. Lembrei com alívio e reconhecimento os esforços que fiz até chegar naquele momento. Sabia que meu destino era ser professora.

O peito doeu e o ar faltou mais uma vez quando a mãe se foi.

Como em vida, amenizei o luto assistindo as travessuras e vivências dos meus alunos. Acompanhei por algum tempo o quadro que mostrava Cássio, um estudante travesso, que abandonou o crime depois de passar pelas aulas da "Profe Jurema". Foi um de tantos que consegui ajudar. Sofri pelos que não pude.

Continuei caminhando.

Demorei horas diante da cena em que Osvaldo e eu contemplamos o sol nascer pela última vez. Não trocamos palavras, porque nos sabíamos. Ter revivido aquele momento de puro amor e companheirismo foi como um banho quente em dia frio.

Minhas pernas tremiam diante do quadro seguinte. A garganta sufocando de sofrimento e raiva quando tive que dizer adeus ao meu companheiro. Tão novo! Sendo preto, não pôde estar naquele lugar, naquela hora. Morreu por estar vivo na sua pele.

Movi minha mão até bem próximo da tela. Recuei e segui.

No quadro seguinte, outra vez recebi o carinho da comunidade. Chorei de gratidão pela homenagem da prefeitura pelos mais de 30 anos dedicados à educação. Era hora de me aposentar, dar espaço para as novas gerações.

Depois, ri constrangida pela roupa que minhas amigas escolheram para o funeral. Eu, de blusa de lã em pleno verão. Vai ver elas acharam que aqui fazia frio.

Antes de formular o pensamento para chamar Amorfo, ele apareceu.

- Vamos?

O ser me levou até a presença do Diabo e da Deusa. Os dois sorriam afetuosa e cordialmente. Amorfo disse:

- Ela não tocou a tela nenhuma vez.

A Deusa sorriu apertando o canto dos olhos enquanto o Diabo levantou de súbito e esbravejou:

- Detesto alma de professor, quase nunca levo. Esses aí parecem vir com o gabarito.


Carol Canabarro apaixonada por literatura e animes. Foi atleta, garçonete, especuladora financeira e professora. Morreu duas vezes, ressuscitou em ambas. Hoje é escritora em construção e escrava de três gatos. Participa do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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